sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A arte do vidro


Alessia e Claudio Radiciotti

Em Roma, em setembro último,
visitei o ateliê/residência da família Radiciotti.
Nele, a cada dia, faz-se reviver a antiga arte dos
mestres vidreiros. Em meio a uma profusão de luminárias,
pratos, painéis, portas, jóias e outros objetos,
Cláudio e Alessia, pai e filha, parecem confirmar a tradição
de que os artistas do vidro são também
mestres na arte da magia.

Por Luis Pellegrini
Fotos: Lamberto Scipioni

Há milênios, os mestres da arte do vidro transmitem suas habilidades de pai para filho, através de um percurso de experimentações e de invenções, nas quais a habilidade manual e a utilidade do objeto criado se fundem com a criatividade artística. Não é diferente para dois mestres contemporâneos dessa arte antiquíssima, os italianos Cláudio Radiciotti e sua filha Alessia. Ela, glass designer formada pela Academia de Belas Artes de Roma, na Itália; ele, conhecido expoente do panorama artístico romano.


A esposa, Gioia, mãe de Alessia, e mais um cão, três gatos, dois periquitos e um pássaro mainá indiano completam a família. Os Radiciotti vivem e trabalham num grande apartamento de cobertura situado na Via Umberto Saba 4, no bairro EUR, em Roma (visite o site: www.radiciotti.it). Misto de antiga bottega artigiana e moderna residência, a casa/ateliê dos Radiciotti dá a quem chega a curiosa impressão de ser uma nave para se viajar no tempo e no espaço. Nas paredes do grande salão central, prateleiras repletas de obras em vidro disputam espaço com óleos, desenhos e gravuras assinadas tanto por Cláudio quanto por vários outros artistas plásticos amigos da família. Num outro salão, onde ficam os fornos para a fusão dos vidros, uma imensa mesa de trabalho também serve de base para as gaiolas dos pássaros. No ateliê de criação, há incontáveis recipientes transparentes cheios de pigmentos para a produção de vidros coloridos. Alguns ângulos da casa lembram um laboratório alquímico misteriosamente transposto da Idade Média para a Roma de hoje. É nesse lugar que esses dois bruxos da moderna arte do vidro, não por acaso pai e filha, fazem suas artimanhas, inventando e criando peças cuja beleza chega a tirar o fôlego de quem as vê. Em todos os cantos há obras de vidro criadas pela dupla. São sobretudo luminárias, mas também portas, janelas, vitrais, divisórias, pratos, taças e copas, uma infinidade de objetos para o uso cotidiano que parecem feitos de luz colorida e solidificada.


“Esse é o mistério do vidro”, diz Cláudio. “Como a água, ele é na verdade um fluido, só que muito mais viscoso. Como a água congelada, ele derrete e vira líquido quando subimos a sua temperatura. É por conta dessas características que o vidro é a matéria-prima ideal para realizarmos a nossa light painting, pintura de luz, uma refinada evolução da antiga técnica da vidro-fusão, com a qual é possível obter-se extraordinários efeitos pictóricos graças à intensidade cromática do material utilizado.” E, sem conter o próprio entusiasmo, ele acende uma a uma as várias luminárias de vidro dispostas ao longo das paredes. O salão logo se transforma numa caverna das maravilhas. Atravessadas pela luz, cada uma delas revela cenas e paisagens figurativas e abstratas, feitas de cores tão intensas que parecem coisas vivas. Muitas utilizam motivos próprios da estética de Claudio e Alessia. Outras revelam suas fontes de inspiração: Picasso, Braque, Cézanne, Chagal, Klee, Klimst, Kandinsky, Miró, Monet e vários outros grandes da pintura europeia do século 20. Saídos todos da paleta mágica dos Radiciotti, esses vidros não têm nenhum pudor de se apossar das idéias daqueles grandes, para devolvê-las, transfiguradas, na linguagem desse material.


Qual a origem do vidro? Como a técnica de produção do vidro de arte se desenvolveu até chegar aos Radiciotti?, pergunto, afobado, na tentativa de subtrair-me ao fascínio um tanto perturbador daquelas peças luminosas. Cláudio se acomoda na poltrona. A conversa será longa. Diz que o vidro tem origens muito antigas, e que até hoje é difícil se estabelecer com certeza qual povo o descobriu, certamente de maneira fortuita e inesperada. Segundo uma antiga história fenícia, recontada pelo historiador Plínio, alguns mercadores, retornando do Egito com uma carga de natrão (ou salnitro), pararam uma noite à beira de um rio para descansar. Não encontrando pedras no local para colocar as panelas onde cozinhariam o jantar, tomaram alguns blocos de natrão e sob eles acenderam o fogo que continuou a queimar por toda a noite. Pela manhã, ao despertar, esses mercadores viram com estupor que, em vez da areia do rio e dos blocos de natrão havia no lugar um novo material brilhante e transparente. Estava descoberto o vidro.


Trata-se e uma lenda, mas ela contém verdades a respeito da composição do vidro e da difusão desse material na orla mediterrânea pelos mercantes fenícios. O vidro nasce da combinação da sílica, mineral contido na areia de rio, combinada com cal (carbonato de cálcio); a fusão é facilitada por uma substância alcalina, a soda; esta última extraída na antiguidade das cinzas das algas e de plantas costeiras.

A mais antiga manufatura conhecida do vidro provem da Ásia ocidental, na Mesopotâmia (atual Iraque), e remonta à Idade do Bronze, ao redor do terceiro milênio antes de Cristo. Os mais antigos trabalhos encontrados são contas coloridas, carimbos e sigilos, ornamentos de marchetaria e placas. Essas técnicas mais antigas possibilitavam apenas a fabricação de peças pequenas, quase sempre destinadas a usos ritualísticos ou decorativos. Só bem mais tarde, ao redor dos século 16 e 15 antes de Cristo, aparecem os primeiros objetos de dimensões maiores, vasos, jarras, copas. Eles eram bastante frequentes na época dos faraós, no Egito. Como, naquela época, o Egito conquistara vastas áreas da Mesopotâmia, da Síria e da Palestina, é provável que tenham aprendido os segredos da composição e da fabricação do vidro com alguns prisioneiros que os conheciam bastante bem.


Rapidamente, a tecnologia da produção do vidro se difundiu em toda a orla do Mediterrâneo entre os séculos 15 e 13 antes de Cristo. Apesar disso, o vidro permaneceu um produto raro e caro, por conta das dificuldades da sua produção. As fábricas foram instaladas nos grandes centros urbanos, e desenvolveram sua atividade sob o patrocínio do rei ou da classe aristocrática. Eram, de qualquer forma, pequenos ateliês de dimensões e de produção bastante limitadas.

Já nessa época, os vidreiros conquistaram uma auréola que, de certa forma, permanece até os dias de hoje. Eles constituíam uma classe de operários de elite, dedicados a uma arte “esotérica”: os métodos da sua atividade eram considerados fruto da habilidade e talento pessoais, mas também da magia e da posse de poderes ocultos.

As diferentes formas de produzir e trabalhar o vidro foram surgindo e se desenvolvendo ao longo dos séculos, dando origem a várias tecnologias. Uma delas, a do vidro soprado, surgiu aparentemente no antigo Egito, e atingiu seu máximo desenvolvimento em Veneza e nas cidades vizinhas de Murano e Burano, durante a Idade Média, bem como na região da Boêmia alemã e checa. Foi também nesse período que surgiu a extraordinária arte dos vitrais, que até hoje podem ser admirados nas grandes catedrais cristãs da Europa e de outros lugares do mundo. A técnica continua sendo utilizada até hoje, sobretudo para a realizações de obras de arte. Já o termo “vidro cristal”, que deriva do cristal mineral, assumiu uma conotação de vidro incolor de alta qualidade, geralmente usado para a confecção de objetos refinados como taças, vasos e contas para lustres e outros lampadários.


Por que a escolha do vidro como matéria-prima da sua arte? “Porque o vidro, com sua transparência, funciona como um filtro de luz. Ao passar através dele, a luz revela todos os matizes das cores que o compõe. E uma simples luminária de vidro, por exemplo, se transforma numa verdadeira porta dimensional para quem a contempla. Ela permite que o observador faça o caminho inverso: passar para o outro lado para encontrar, não simplesmente a luz elétrica que a ilumina, mas toda a paleta subjetiva que representa a própria origem das cores: a dimensão quase intangível da cor pura”, diz Cláudio.

“Talvez seja por isso, por possibilitar um alcance tão profundo à percepção, que o vidro seja um material tão delicado, e muitas vezes tão ciumento e possessivo. Você não imagina quantas peças simplesmente se quebram ou se desfazem durante a cocção no forno, para que apenas algumas poucas permaneçam intactas e perfeitas. Mesmo assim, quando você começa a trabalhar com ele, não consegue mais parar. O vidro se apodera do vidreiro, acena sempre com algum novo mistério a ser descoberto, e não admite que você se dedique a qualquer outro material. Ele exige exclusividade”.

E vocês estão dispostos a concedê-la? Cláudio e Alessia respondem quase ao mesmo tempo: “Acho que não somos nós a escolher o vidro. É ele quem nos escolhe.”




Mais informações sobre a arte do vidro, e para contatar Alessia e Claudiio Radiciotti: http://www.radiciotti.it/

2 comentários:

  1. Salve, Pellegrini!
    Isso é que é começar um novo projeto com estilo! Esse post sobre a arte do vidro está excepcional, realmente a técnica deles lembra muito as telas desses grandes pintores. Gostei da aula, gostei também do post lá de baixo sobre as araras azuis. Já estou curioso com o que virá por aí! Ultreya y Suseya!
    paulocésare

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  2. Muito lindo o trabalho de vocês parabens!

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