segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

MUSEU DA CORRUPÇÃO

No jornalismo, às vezes, surgem iniciativas que aliviam a pasmaceira em que a profissão atolou nas últimas décadas. A mais recente dessas empreitadas redentoras é iniciativa do Diário do Comércio, quotidiano paulista patrocinado pela Associação Comercial de São Paulo, e se chama “Museu da Corrupção”. Verdadeiro arquivo-geral das trapaças, tramóias e maracutaias que desde sempre assolam o Brasil, o portal se transforma num assombroso espelho da grande patologia nacional – a corrupção deslavada -, da qual as perversões que nossos políticos ostentam impunemente são apenas reflexos. A origem do problema se situa não exatamente mais em baixo, mas sim mais lá dentro: No fundo da nossa alma histórica. Um museu que todos nós, brasileiros, devemos visitar e meditar a respeito. Se quisermos que este país tenha algum futuro. Não à toa o site acaba de ganhar o Prêmio Esso 2009 de melhor contribuição à imprensa. Recomendo vivamente: http://www.muco.com.br/

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

BOTO-TUCUXI - O rei do Delta do Parnaíba






    Mamãe tucuxi e seu filhote, foto de Leonardo Flach


No litoral maranhense e do Piauí, jovens biólogos desvendam a vida misteriosa dos botos, golfinhos, baleias e peixes-boi que vivem na região. Muito inteligentes, esses animais chegam a ajudar no resgate de pessoas que caíram ao mar. Fui lá conferir

Por Luis Pellegrini, de Parnaíba, Piauí

No porto pesqueiro de Luís Correa, situado no delta do rio Parnaíba (PI), o biólogo Mário Neto, do Procema/Icep (Projeto Cetáceos do Maranhão/Instituto Ilha do Caju Ecodesenvolvimento e Pesquisa), anota com interesse o relato do pescador Francisco Damasceno Santiago. Recém-chegado do mar, com o filho nos braços, ele narra uma história fascinante: “Os botos são muito inteligentes. Quando estamos em alto-mar, esperando para recolher as redes, alguns deles chegam bem perto do barco, põem a cabeça fora d’água e passam um tempão olhando para nós com a mesma curiosidade com que olhamos para eles. Certa vez, ajudaram a salvar um pescador do meu barco. Ele caiu na água quando já era noite escura e voltávamos para o porto. A bordo, todo mundo dormia, menos o piloto, que não viu nada.
                                                             
                                                                 Sentado, o pescador Francisco de Oliveira e seu filho

"Horas depois, quando estávamos perto de Luís Correia, nos demos conta de que nosso companheiro desaparecera. Ficamos desesperados e imediatamente voltamos para tentar encontrá-lo. Sem muita esperança, pois sequer estávamos certos do rumo a seguir. Foi aí que um grupo de botos-tucuxi (ou botos-cinza) pôs-se a nadar junto à proa do barco, como costumam fazer esses bichos. De repente, notamos que eles saltavam no ar e davam uma clara guinada para a esquerda. Alguém gritou: ‘Estão nos indicando a direção correta!’ Viramos à esquerda e os botos pararam de saltar. Algum tempo depois, começaram a saltar à direita, e entendemos que tínhamos saído do rumo certo e
que deveríamos mudar e seguir a orientação deles. “E assim foi, durante cerca de duas horas. De súbito, eles pararam de saltar e começaram a nadar em círculos. Desligamos o motor do barco e, logo depois, começamos a ouvir a voz do nosso companheiro, vinda de algum ponto na escuridão do mar. ‘Estou aqui, estou aqui. Acudam!’ Chegamos finalmente até onde ele estava, boiando sobre as águas, e o recolhemos ao barco.”
Uma história incrível, confirmada pelos outros pescadores. “E aí”, perguntou Mário, “depois de testemunhar fatos como esse, o que você acha: os botos são peixes ou alguma outra coisa?” Santiago acaricia a cabeça do filho, pensa durante algum tempo e responde: “Não, peixe não pode ser. É inteligente demais para ser peixe. Deve ser alguma outra coisa!”
                                                                                   Alexandra entrevista um pescador

O relato de Santiago é apenas um entre os muitos que os pesquisadores do Procema ouvem e gravam sobre os hábitos e peculiaridades dos botos, baleias, golfinhos, peixes-boi e outros habitantes dos mares do Piauí e do Maranhão. Esses biólogos saem cedo de Parnaíba (PI), munidos de seus gravadores, cadernos de notas e câmeras fotográficas, rumo às pequenas comunidades de pescadores da região. Conversam com eles nas horas em que estão de folga, e às vezes são convidados para acompanhá-los ao alto-mar, durante as pescarias.
“As pessoas das comunidades de pescadores são muito carentes de informação, sequer conhecem a diferença entre peixe e cetáceo – apenas sabem que estes últimos ‘são mais inteligentes’”, explica Mário Neto. Outro membro do Procema, a educadora ambiental Jacqueline de Oliveira Vieira, entra na conversa: “Os pescadores se sentem valorizados ao ver que nós os procuramos e damos importância ao acervo de informações e de experiência que eles carregam. Chegamos a eles de igual para igual, como especialistas que conversam com especialistas. Frequentamos as casas deles, sentamos no chão, tomamos café, comemos peixe frito, nos tornamos alguém da família. Tudo isso produz um grande efeito na auto-estima dos pescadores. Eles certamente aproveitam as informações e as técnicas que procuramos passar para eles. Porém, acho que nós mesmos, pesquisadores, aproveitamos muito mais. Quase tudo que sabemos vem do aprendizado teórico. Mas eles aprendem tudo na prática, e isso faz com que desenvolvam uma sabedoria de valor inestimável.”

Aula comunitária

Contatar as comunidades de pescadores é apenas uma das muitas atividades desenvolvidas pelo pessoal do Procema. No Centro de Educação Ambiental da Vida Marinha, na Ilha do Caju, entidade irmã do Procema, já foram montados esqueletos completos de boto-tucuxi, baleia minke-anã, cachalote, baleia-de-bryde. O Centro é o maior do Nordeste em diversidade de espécies. Na montagem dos animais foi usada tecnologia europeia: cabos de aço suspensos, barras de alumínio para sustentar o esqueleto axial. São realizadas visitas agendadas de grupos de crianças e adolescentes.
   Ingrid Clark, fundadora do Procema

Criado em 2005 por Ingrid Clark, da família proprietária da Ilha do Caju, o Projeto Cetáceos do Maranhão/Instituto Ilha do Caju Ecodesenvolvimento e Pesquisa (Procema/ICEP) foi contemplado pelo Programa Petrobras Ambiental na seleção pública de 2006. O patrocínio permitiu que a entidade se estruturasse e é vital para a continuidade dos trabalhos. Desde sua fundação, o Procema vem realizando monitoramentos regulares ao longo da costa do Maranhão e do Piauí, registrando e informando pescadores e comunidades ribeirinhas sobre a importância de preservar não só os cetáceos, mas todo o ecossistema que engloba a região. O Procema tem organizado também seminários, cursos e oficinas, muitas vezes em parceria com as prefeituras dos municípios da região.

Apesar do número ainda exíguo de membros ativos, as ações do Procema na região se multiplicam. Na região de Alcântara (MA), por exemplo, verificou-se que a ocorrência de efeitos causados pela ação do homem, tais como pesca, ruídos de embarcações ou incremento do turismo em pontos de ocorrência dos botos, é muito grande. Os biólogos também constataram uma grande ocorrência de consumo de carne do boto-tucuxi, usada como isca para captura de tubarão, retirada dos olhos e das gônadas do animal, a serem utilizados como amuleto ou em trabalhos de magia supersticiosa. Em decorrência dessas ações predatórias, hoje esse boto integra a lista dos animais ameaçados de extinção.

Alexandra examina corpo de boto encalhado na praia








Para complicar ainda mais a situação, existe captura acidental e incidental indiscriminada, tanto no Maranhão quanto no Pará. Diante de tal quadro, os biólogos entenderam que é preciso realizar um amplo trabalho de conscientização ambiental junto à população, para evitar a destruição desses animais.

Jacqueline e Georgia protegem filhote de boto


O Procema também fechou parcerias com várias universidades, tais como a Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e a Universidade Estadual do Maranhão (Uema), e está costurando outros apoios na área acadêmica. Alguns estudantes já foram incorporados ao projeto. No momento, há seis estagiários em ação, cada qual desenvolvendo uma linha de pesquisa voltada para estudar uma atividade específica, principalmente relacionada ao boto-tucuxi.

Uma equipe de biólogos abnegados (e felizes)

Em Parnaíba, durante uma semana, juntei-me aos pesquisadores do Procema para participar de trabalhos de campo: coleta de vestígios de cetáceos encalhados nas praias, avistamento de animais no mar, visitas a comunidades de pescadores. Todos esses biólogos são jovens, simpáticos, saudáveis e apaixonados pelo que fazem. Como todo biólogo que atua no Brasil, trabalham muito e ganham pouco. Sua profissão é uma espécie de sacerdócio. Mas levam uma vida de sonho para quem tem uma vocação real de atuar em estreito contato com o mundo natural. Ao ouvi-los, confesso que senti uma ponta de saudável inveja... e profunda nostalgia dos tempos em que quis ser biólogo, e não fui.

Da esquerda, a equipe do Procema: Wennys, Mário,
Geórgia, Jacqueline e Alexandra

Os rapazes e moças do Procema, ao contrário, escolheram ser biólogos, e são. “Escolhi a biologia por curiosidade e sentimento de contato com a natureza”, diz Geórgia de Oliveira Aragão, encarregada de monitoramento e encalhe de animais. “Trabalho com cetáceos e no contato com as comunidades de pescadores. A boa qualidade de vida que meu trabalho proporciona também foi fator importante na minha escolha.” Mário Magalhães Neto, por seu lado, dá ênfase ao trabalho de contato com as comunidades de pescadores. “As pessoas dessas comunidades são muito carentes de informação e sequer conhecem a diferença entre peixe e cetáceo. Apenas sabem que estes últimos ‘são mais inteligentes.”
Jacqueline de Oliveira Vieira, especialista em educação ambiental, amplia a colocação do colega: “O fator primordial na minha escolha foi a liberdade real que a profissão nos proporciona. Embora tenhamos de adotar metodologias bem precisas, sobretudo para o trabalho de campo, a própria atividade nos deixa livres para tomar atitudes e decisões. Por exemplo, no contato com os pescadores, no ato de colher informações e de ouvir relatos.”
Wennys Dean Sousa da Silva, técnico em geoprocessamento, sintetiza a posição do grupo. “Sou, por enquanto, o mais novo do projeto. Faço a faculdade de engenharia de pesca. Essa área tem pouco ou nenhum interesse em conservação. O que interessa é a produção. Participei da montagem dos esqueletos de cetáceos na Ilha do Caju e comecei a me envolver de um jeito diferente com esse universo. Fui convidado a participar do Procema. Como conciliar conservação e produção? Vou ter de escolher. Mas, com certeza, se for para a produção, ela será sustentável. Acho que a pessoa deve escolher livremente a sua atividade, deve fazer o que a deixa feliz. Não tenho a mínima vontade de ficar trancado num escritório, isolado do mundo. Por isso escolhi uma atividade que proporciona maior liberdade.”


           Alexandra e Jacqueline examinam corpo de boto encalhado na praia

Progresso, sim, mas de forma ordenada

A bióloga Alexandra Fernandes Costa é coordenadora técnica do Procema. Com larga experiência na Amazônia, onde passou dois anos pesquisando cetáceos e sirênios da região, é ela quem agora orienta os trabalhos de campo dos biólogos do Procema. Delicada e inteligente, tem um surpreendente cuidado ao dissecar os corpos de golfinhos mortos que terminam nas praias do litoral do delta do rio Parnaíba. “Ainda na faculdade, entrei para um grupo que estudava cetáceos. Era um bando de estudantes que gostavam de surfar, e os botos muitas vezes surfavam com eles”, conta Alexandra, enquanto secciona a coluna vertebral de um boto-tucuxi.

Cetáceo muito raro, este filhote de cachalote-anão encalhou
em praia do Delta do Parnaíba

“Na Amazônia trabalhei em dois grandes projetos, sempre ligados a cetáceos e a sirênios. Trabalhei no Museu Goeldi, corri a Amazônia toda. Agora trabalho na região do delta do Parnaíba, que possui pouquíssimos estudos sobre cetáceos. Nosso projeto está centralizado no incremento dos conhecimentos e registros de ocorrências desses animais no Delta.”
Por que isso é tão importante? “Porque, embora o litoral do Piauí seja o menor do Nordeste (apenas 66 quilômetros), ainda não foi objeto de estudos específicos sobre o tema. Os biólogos da nossa região saíam diretamente da escola para dar aulas. Não havia nenhuma possibilidade de pesquisa e de trabalho de campo. Por isso é que esperamos confiantes que o Procema tenha continuidade.”
                                                              
                                                                Na Ilha do Caju, um esqueleto completo de baleia     

Ela elogia a relação entre o Procema e o Instituto Ilha do Caju: “É uma oportunidade fantástica ter um instituto (o Ilha do Caju) que proporciona logística, espaço físico e a própria Ilha do Caju, um santuário ecológico absolutamente extraordinário. Trata-se de uma grande ilha, que oferece condições privilegiadas em termos de ecossistemas – é uma microrregião muito importante e em muitos aspectos única no Brasil. Melhor ainda é o fato de Ingrid Clark, da família Clark, proprietária da ilha, identificar o Procema e a Ilha do Caju como partes fundamentais do seu projeto pessoal de vida. Ingrid é a nossa grande idealizadora. A ilha é uma RPPN, uma reserva particular do patrimônio natural. Antes dela não havia na região nada nem ninguém que agregasse forças para um trabalho de grande porte na área ambiental.”

A equipe do procema em trabalho de campo

Sem a parceria com a Petrobras, o Procema simplesmente não existiria, explica Alexandra. “Graças a esse patrocínio, dispomos hoje de uma boa infraestrutura, uma logística privilegiada, tudo no âmbito do Programa Petrobras Ambiental. Os resultados já alcançados são bem relevantes e serão apresentados em alguns meses. O projeto nos permite manter os olhos voltados para a nossa região. Se o Delta ficar aberto apenas à especulação imobiliária – que aqui chegou como um verdadeiro tsunami de interesses políticos, financeiros e econômicos –, isso significa grandes riscos e preocupações ambientais. Se não houver iniciativas locais de acúmulo de conhecimento e know-how específico a respeito das reais características ambientais do Delta e arredores e das suas condições de sustentabilidade, o risco será ainda maior. Nós, do Procema, também queremos que o progresso chegue, porém de forma ordenada. Se essa ocupação for feita de modo desordenado e predatório, o Delta como um todo será palco de uma catástrofe.”
Ela considera vantagem a pouca idade da equipe: “Isso é muito promissor. Vários outros estudantes vêm à nossa procura em busca de oportunidades de trabalho e de estudos. Isso nos agrada, pois uma das nossas ações é justamente aproximar os meios acadêmicos do Procema, através de ações como minicursos, palestras e encontros.”
                                                               Observação de cetáceos em alto-mar


A pesca do tucuxi é proibida, mas...

O boto-tucuxi, ou boto-cinza (Sotalia guianensis), é um cetáceo encontrado em águas costeiras e estuarinas das Américas Central e do Sul. Dos mamíferos marinhos que frequentam as águas do delta do Parnaíba, ele é o mais numeroso. Possui ventre branco (adultos), com dorso e parte lateral cinza, e chega na maturidade a 2 metros de comprimento. Os botos-tucuxi são polígamos e podem formar grupos com até 90 indivíduos. Pesam em média 50 quilos.
Mamífero situado no topo da cadeia alimentar, o boto-tucuxi come peixes e lulas; estas, por sua vez, alimentam-se dos zooplânctons e estes, dos fitoplânctons. O único predador do boto é o próprio homem – sobretudo porque morre asfixiado em suas redes de pesca – e, eventualmente, quando o animal está machucado ou muito enfraquecido, um tubarão. Mas, em geral, o boto não tem predador natural.
Animais totalmente adaptados à água, muito inteligentes, eles não dormem – “descansam”, reduzindo o metabolismo corporal, quando ficam próximos à superfície, em processo de flutuação.
O Brasil veta a pesca ou caça ao boto, conforme a lei federal 7.643, de 1987: “Fica proibida a pesca ou qualquer forma de molestamento intencional de toda espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras.”
Site www.procema.blogspot.com; site em preparação: www.procema.org.br

CUMURUXATIBA - Sol e mar na Costa das Baleias



                                                                              

Praia de Imbassaúba, em Cumuruxatiba, sul da Bahia



No sul da Bahia, a Vila de Cumuruxatiba prepara-se para brilhar como atração maior da Costa das Baleias. Mas outras coisas acontecem por ali: vários recém-chegados, sobretudo casais provenientes das cidades grandes, decidiram assumir muitas iniciativas com o objetivo de beneficiar a comunidade. O que transforma Cumuruxatiba num exemplo de cidadania digno de ser seguido.

Texto e fotos de Luis Pellegrini

Cumuruxatiba tem mironga, e das boas. Chegar lá é um tanto trabalhoso – são cerca de quatro horas de carro, 223 quilômetros ao sul de Porto Seguro (BA), 32 dos quais de terra batida. Sair de lá, no entanto, é mais difícil ainda. Para alguns, isso revelou-se impossível. Basta ver o número de casados e solteiros, nacionais e estrangeiros, que lá foram, em toda inocência, passar uns dias de férias, deixaram-se tocar pela varinha mágica dos duendes do lugar, e não resistiram. Arrumaram malas e cuias e lá se instalaram de modo definitivo.


Quem quiser explicar esse grude que Cumuru – como a chamam os íntimos – impõe, não terá de investigar muito. Basta caminhar pelas praias do lugar, sem lenço nem documento, junto às ondas que quebram sobre as areias branquíssimas, ou no alto das falésias de arenito que as acompanham, todas elas recobertas de florestas de coqueiros. Se entregar à preguiça mais venial numa das redes que as pousadas à beira mar oferecem. Partir para um outro pecado, a gula, num dos restaurantes especializados em frutos do mar. Visitar logradouros de grande charme histórico, como a barra do Rio Cahy, logo ao lado. Muitos historiadores acreditam que foi bem ali que Nicolau Coelho, um dos almirantes de Cabral, travou o primeiro contato entre portugueses e índios. Hipótese reforçada por trechos da carta de Pero Vaz de Caminha e pela visão que se tem do Monte Pascoal, quando se está no mar, em frente ao Cahy.


As atrações não param aí. Tem também os passeios de barco para ver, de bem perto, e a poucos quilômetros da praia, as baleias jubarte que, de julho a novembro, vão parir e amamentar seus filhotes naquelas águas calmas e pouco profundas. Não à toa o litoral de Cumuruxatiba foi batizado de Costa das Baleias. Tem também o nascer e o pôr-do-sol, quando o céu fica vermelho e o mar fica dourado, e que deve ser contemplado de preferência do alto das falésias. Tem as cocadas da dona Neuza, na pracinha central do vilarejo. Ao lado fica a lojinha de artesanato da índia Naiá, pataxó da gema, que apesar de morar na cidade faz questão de se enfeitar com seus adornos tradicionais. Tem a escolinha de navegação a vela para as crianças. Tem as lojas/ateliês das duas ceramistas do lugar, Eliana Begara e Renata Homem. Tem, no amanhecer e no entardecer, a chegada dos pescadores com seus balaios cheios de peixe.

A lista dos encantos de Cumuruxatiba parece não ter fim. Rapidamente se percebe por que tanta gente da cidade grande, de São Paulo, do Rio, de Belo Horizonte e Vitória, e até alguns baianos de Salvador, escolheram se estabelecer ali. Mas o que mais chama a atenção é que praticamente todos esses recém-convertidos à cumurumania preferem não viver apenas no desfrute da sombra e da água fresca.
Cada um deles, além de desenvolver uma atividade profissional condizente com as características do lugar, dedica-se a alguma função ou obra voltada à cidadania e à preservação ambiental e cultural do lugar. Parecem ter entendido que, sem isso, a segurança desse paraíso reencontrado estará ameaçada. Os 32 quilômetros de estrada de terra batida cedo ou tarde poderão ser recobertos de asfalto, e por ele chegarão as hordas do turismo de massa com seu habitual cortejo de mazelas e destruições.















O principal alvo do interesse desses neocumuruxatibanos, como não poderia deixar de ser, é a própria comunidade original do lugar. Quase todos os seus membros pertencem a famílias de pescadores, artesãos ou pequeno agricultores que há séculos vivem ali, até há pouco quase sem contato com o mundo exterior. Que fazer para prepará-los para a chegada da grande civilização de fora, sem que percam a sua encantadora e simples identidade? Despertar neles a consciência do valor do seu próprio patrimônio cultural e histórico foi a primeira necessidade enfrentada. Várias iniciativas foram tomadas nesse sentido.


A chef Dolores Lameirão, por exemplo, veio de Angola e levou a Cumuru todo o seu conhecimento de gastronomia desenvolvido em seu país, e depois em Portugal, na França e na Suíça. Foi lá que ela conheceu o suíço Walter Kunzi, com quem se casou, teve dois filhos, e montou em Cumuruxatiba o restaurante Mama África, um must do lugar. Junto a dois outros casais (os dentistas Ricardo e Andréia Belucio, donos do Café Gelato, e Luiz Fernando e Helena), Dolores e Walter dão cursos de culinária e gastronomia para jovens carentes de Cumuru. A bióloga Juliana e sua amiga Lucinha dirigem um grupo de danças típicas. O capoeirista P de Serra montou um grupo de capoeira.

Aldo, Rogério e Giorgio (navegador italiano que depois de girar o mundo se estabeleceu em Cumuru com a esposa e filhos) criaram uma escolinha de navegação a vela para as crianças da comunidade. Filhos de turistas podem frequentar as aulas, pagando uma taxa módica para ajudar na manutenção dos barquinhos.



Dona Elizete e seu marido Rui, donos do restaurante Catamarã, criaram um ateliê-cooperativa para ensinar bordados e artesanatos com tecidos a dezenas de meninas e adolescentes da comunidade. Os produtos são vendidos numa pequena butique ao lado do restaurante. Metade do que se arrecada é repartido entre as meninas, a outra metade é para a reposição do material. Luiz e Milena, donos da Pousada Rio do Peixe, dedicam-se a um projeto de reforço escolar, para ajudar a passar de ano os alunos que têm dificuldades nos cursos regulares. O médico Francisco Begara, por seu lado, desenvolve um trabalho de aconselhamento sanitário para a comunidade e nas comunidades indígenas pataxó.


Francisco, por sinal, é o único médico de Cumuruxatiba, onde toma conta do dispensário. Nascido no Marrocos, formado em São Paulo, ele e a esposa, a ceramista Eliana Begara estão lá há pouco mais de um ano. “Este lugar é um problema para um médico, pois aqui ninguém fica doente”, conta. “Quando aparece alguém no dispensário é só para tratar de um resfriado ou do hematoma de algum moleque que despencou do coqueiro. O caso mais grave que enfrentei, há uns quatro meses, foi o parto de uma índia pataxó de 23 anos. Ela chegou em avançado trabalho de parto, mas logo vi que a criança estava em má posição. Como em Cumuru não tem maternidade nem hospital, achei melhor levá-la às pressas para a cidade de Prado, a uns 50 quilômetros de distância, por estrada de terra. No meio da viagem, talvez devido aos solavancos do meu pequeno Fiat, o bebê acertou a posição, e a índia gritou lá do banco de trás: ‘Doutor, ela tá saindo.’ Parei o carro na beira da estrada e fiz o parto ali mesmo. Quando vi a cabeleira escura da menina, exclamei: ‘Ela já nasceu de cocar!’ Quinze minutos depois a índia estava com seu bebê nos braços, enrolado nuns panos que eu levara no carro. Voltamos para o dispensário, em Cumuru, fiz uma higiene geral na mãe e na filha, e logo depois lá se foi ela, de volta para a aldeia, carregando a criança.”

Durante a temporada, nos finais de semana, os grupos de dança, de percussão, capoeira, e ocasionalmente um outro grupo composto por índios pataxós, se exibem num espaço especialmente preparado, num ângulo da pracinha central da vila. Nessas ocasiões, arma-se um mercadinho de artesanatos regionais no mesmo local. A entrada é franca.


Em Cumuruxatiba, a visita ao santuário das baleias jubarte é uma aventura à parte. Há milênios elas frequentam as calmas e tépidas águas da região, perfeitas para a fase de acasalamento, parto e amamentação desses cetáceos gigantes. “Elas não vêm aqui para comer, e sim para se reproduzir”, explica a bióloga Juliana, quando a bordo do barco Libra nos dirigimos para a área onde as baleias e seus filhotes se concentram. “O restaurante delas é nas águas frias da Antártica, cheias de camarões krill e de cardumes de sardinhas e outros pequenos peixes, para onde elas vão a partir do final de novembro. Aqui é só para namorar e acasalar e para cuidar dos bebês até que eles estejam fortes o suficiente para acompanhar as mães nessas longas viagens.”

Na zona onde as jubarte se concentram o show é contínuo e o piloto do barco mal sabe para onde se dirigir: há baleias navegando à direita e à esquerda. Para saber onde elas estão, basta prestar atenção na superfície do mar e, de repente, shshsshshs! Lá está o jato d’água que elas emitem ao respirar na superfície, e que denunciam suas posições. Jato localizador que, por sinal, permitia aos baleeiros matarem milhares de jubartes todos os anos, quase levando-as à extinção. Quando o barco se aproxima, algumas, mais tímidas, mergulham e fazem aparecer a cauda manchada de branco. Outras não estão nem aí. Acostumadas à presença das embarcações carregadas de pessoas, elas parecem saber que tudo que queremos delas são algumas fotografias. E existem inclusive as exibidas, que não só não fogem como dão performances na forma de saltos (os machos quando tentam impressionar alguma fêmea), ou mantêm por vários minuto o rabo fora d’água, batendo na superfície (as fêmeas, quando querem enxotar os pretendentes).


O passeio às baleias dura umas quatro horas, com água e frutas a bordo. Os mais sujeitos a náuseas devem tomar algum remédio antienjôo uma hora antes de embarcar. Uma tempestade estomacal é a forma mais fácil de se estragar o passeio.

Luis Pellegrini visitou Cumuruxatiba a convite da Gol e da Cumurutur – Associação dos Empresários de Turismo e Hotelaria de Cumuruxatiba, e da Assimptur - http://www.assimptur/



BOOM TURÍSTICO

A Vila de Cumuruxatiba, pertencente ao município de Prado, no sul da Bahia, inclui o núcleo urbano e arredores. Tem cerca de cinco mil habitantes, aproximadamente 70 pousadas e outros tantos restaurantes, quase sempre especializados em peixes, camarões, lulas, polvos e lagostas. Para os padrões das cidades turísticas, os preços são bastante razoáveis.

As praias são muitas, todas bonitas, com destaque para a Japara Grande e a Japara Mirim, a de Imbassaúba e da Barra do Cahy. Elas nunca estão muito cheias.

Além do passeio de barco para ver as baleias (que acontece apenas entre julho e novembro), várias outras excursões podem ser feitas por mar. Pode-se ir até a Ponta do Corumbau e Caraíva, com parada na aldeia pataxó de Barra Velha, cujo acesso é possível somente por meio de barco.

As opções de hospedagem são ótimas. A Pousada Rio do Peixe é considerada a melhor, oferecendo tudo que um hotel de primeira tem. Mas várias outras nada deixam a desejar, entre elas a Pousada É, a Uai Brasil, a das Cores, todas elas situadas na praia. Há também as pousadas Axé e a Clara, destaques no centro urbano.

O fruto amargo da arrogância







O pequeno comentário a seguir foi publicado na edição de 23/12/2009 da revista IstoÉ, no dossiê dedicado aos resultados da recém encerrada Conferência de Copenhague sobre o aquecimento global.

Por Luis Pellegrini

De quanta terra precisa o homem? é o título de um conto de Leon Tolstói. Nele, um homem faz pacto com o diabo. Receberá toda a terra que conseguir percorrer a pé, durante um dia, do nascer ao pôr-do-sol. O homem passa o dia sem se conceder descanso. Quando o sol já se aproxima do horizonte, ele não se dá por satisfeito. Intensifica o esforço, corre. Falta-lhe fôlego, mas ele não para. Quer ainda possuir aquele vale, aquele bosque. Quando cai, morto de fadiga, o conto explica de quanta terra precisa um homem: se ele não tem consciência de limites, apenas um par de metros lhe basta. Mais do que isso não é preciso para ser enterrado.

A trágica moral contida nesse conto sintetiza um mito-chave para a compreensão da atual megacrise ecológica que nossa civilização enfrenta: o mito do único pecado que os gregos consideravam capital, a arrogância, entendida sobretudo como falta de consciência de limites, como ambição desmedida, como desejo incontrolável de posse e de poder.

Para os gregos antigos, a arrogância era o maior de todos os pecados. Era a falha que não tinha remissão. Eles a chamavam hybris, e acreditavam que incorrer nessa falha acarretava a danação eterna. Os deuses não perdoavam o pecado de hybris, pelo simples fato de que, a seu ver, ele escondia o mais nefasto e proibido de todos os desejos: o de se igualar aos próprios deuses.

Não é assim, desse modo arrogante – feito de destruição e poluição do meio ambiente e de exploração insustentável dos recursos naturais –, que tratamos nosso planeta-mãe, a Terra? Convencidos de que somos o centro do mundo e de que todas as coisas foram criadas para satisfazer nossos desejos e necessidades, inventamos uma cultura inteiramente destituída de bom senso: a cultura da produtividade e do consumismo insustentáveis. E, como o homem do conto de Tolstói, não conseguimos mais parar. Seguimos em frente, derrubando e queimando florestas, matando lagos e rios, poluindo os mares e a atmosfera, extinguindo a cada dia várias espécies de plantas e de animais. Sem falar nas mazelas que produzimos para nós mesmos, em termos de perturbações da saúde física, psíquica e mental, ao nos impormos um ritmo e uma carga insustentáveis de trabalho, de produção e de consumismo.

Embriagados pelo desejo de posse e de poder, cada vez mais distantes das sabedorias antigas das quais somos herdeiros, vivemos hoje no esquecimento de que a arrogância, por contrariar a ordem natural das coisas, constitui um fator maior de desequilíbrio. Sem se lembrar de que, por uma lei natural, toda ação que leva ao desequilíbrio gera uma força igual e contrária que procura restabelecer o equilíbrio. Essa força, que os gregos chamavam Nêmesis, era simbolizada por uma deusa implacável, avessa a qualquer compromisso, a qualquer oferenda, a qualquer intercessão apaziguadora. Para os gregos, o aquecimento global nada mais seria do que uma das tantas roupagens da Nêmesis: a consequência nefasta de uma ação errônea.

Esse tipo de raciocínio, por sinal, há muito deixou de ser formulado no âmbito estrito da filosofia e da religião, e invadiu o território mais pragmático da ciência. Cita-se como exemplo a Hipótese Gaia, do cientista inglês James Lovelock. Para ele, a Terra não é uma simples bola mineral a rodopiar espaço afora. Longe disso: Lovelock e seus seguidores entendem nosso planeta como um ser vivo, pulsante, dotado não apenas de um corpo físico, mas também de uma psique e de uma inteligência. Um macro-ser, em tudo análogo a seu filho, o ser humano.

Até quando a Terra suportará sem reagir todos os arranhões que estavam produzindo em sua superfície?, perguntava Lovelock há cerca de três décadas, quando lançou sua teoria. Não precisou esperar muito pela resposta. Ela está aí: o planeta reage às agressões de múltiplas formas e, no momento, a mais importante delas chama-se aquecimento global.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

A arte do vidro


Alessia e Claudio Radiciotti

Em Roma, em setembro último,
visitei o ateliê/residência da família Radiciotti.
Nele, a cada dia, faz-se reviver a antiga arte dos
mestres vidreiros. Em meio a uma profusão de luminárias,
pratos, painéis, portas, jóias e outros objetos,
Cláudio e Alessia, pai e filha, parecem confirmar a tradição
de que os artistas do vidro são também
mestres na arte da magia.

Por Luis Pellegrini
Fotos: Lamberto Scipioni

Há milênios, os mestres da arte do vidro transmitem suas habilidades de pai para filho, através de um percurso de experimentações e de invenções, nas quais a habilidade manual e a utilidade do objeto criado se fundem com a criatividade artística. Não é diferente para dois mestres contemporâneos dessa arte antiquíssima, os italianos Cláudio Radiciotti e sua filha Alessia. Ela, glass designer formada pela Academia de Belas Artes de Roma, na Itália; ele, conhecido expoente do panorama artístico romano.


A esposa, Gioia, mãe de Alessia, e mais um cão, três gatos, dois periquitos e um pássaro mainá indiano completam a família. Os Radiciotti vivem e trabalham num grande apartamento de cobertura situado na Via Umberto Saba 4, no bairro EUR, em Roma (visite o site: www.radiciotti.it). Misto de antiga bottega artigiana e moderna residência, a casa/ateliê dos Radiciotti dá a quem chega a curiosa impressão de ser uma nave para se viajar no tempo e no espaço. Nas paredes do grande salão central, prateleiras repletas de obras em vidro disputam espaço com óleos, desenhos e gravuras assinadas tanto por Cláudio quanto por vários outros artistas plásticos amigos da família. Num outro salão, onde ficam os fornos para a fusão dos vidros, uma imensa mesa de trabalho também serve de base para as gaiolas dos pássaros. No ateliê de criação, há incontáveis recipientes transparentes cheios de pigmentos para a produção de vidros coloridos. Alguns ângulos da casa lembram um laboratório alquímico misteriosamente transposto da Idade Média para a Roma de hoje. É nesse lugar que esses dois bruxos da moderna arte do vidro, não por acaso pai e filha, fazem suas artimanhas, inventando e criando peças cuja beleza chega a tirar o fôlego de quem as vê. Em todos os cantos há obras de vidro criadas pela dupla. São sobretudo luminárias, mas também portas, janelas, vitrais, divisórias, pratos, taças e copas, uma infinidade de objetos para o uso cotidiano que parecem feitos de luz colorida e solidificada.


“Esse é o mistério do vidro”, diz Cláudio. “Como a água, ele é na verdade um fluido, só que muito mais viscoso. Como a água congelada, ele derrete e vira líquido quando subimos a sua temperatura. É por conta dessas características que o vidro é a matéria-prima ideal para realizarmos a nossa light painting, pintura de luz, uma refinada evolução da antiga técnica da vidro-fusão, com a qual é possível obter-se extraordinários efeitos pictóricos graças à intensidade cromática do material utilizado.” E, sem conter o próprio entusiasmo, ele acende uma a uma as várias luminárias de vidro dispostas ao longo das paredes. O salão logo se transforma numa caverna das maravilhas. Atravessadas pela luz, cada uma delas revela cenas e paisagens figurativas e abstratas, feitas de cores tão intensas que parecem coisas vivas. Muitas utilizam motivos próprios da estética de Claudio e Alessia. Outras revelam suas fontes de inspiração: Picasso, Braque, Cézanne, Chagal, Klee, Klimst, Kandinsky, Miró, Monet e vários outros grandes da pintura europeia do século 20. Saídos todos da paleta mágica dos Radiciotti, esses vidros não têm nenhum pudor de se apossar das idéias daqueles grandes, para devolvê-las, transfiguradas, na linguagem desse material.


Qual a origem do vidro? Como a técnica de produção do vidro de arte se desenvolveu até chegar aos Radiciotti?, pergunto, afobado, na tentativa de subtrair-me ao fascínio um tanto perturbador daquelas peças luminosas. Cláudio se acomoda na poltrona. A conversa será longa. Diz que o vidro tem origens muito antigas, e que até hoje é difícil se estabelecer com certeza qual povo o descobriu, certamente de maneira fortuita e inesperada. Segundo uma antiga história fenícia, recontada pelo historiador Plínio, alguns mercadores, retornando do Egito com uma carga de natrão (ou salnitro), pararam uma noite à beira de um rio para descansar. Não encontrando pedras no local para colocar as panelas onde cozinhariam o jantar, tomaram alguns blocos de natrão e sob eles acenderam o fogo que continuou a queimar por toda a noite. Pela manhã, ao despertar, esses mercadores viram com estupor que, em vez da areia do rio e dos blocos de natrão havia no lugar um novo material brilhante e transparente. Estava descoberto o vidro.


Trata-se e uma lenda, mas ela contém verdades a respeito da composição do vidro e da difusão desse material na orla mediterrânea pelos mercantes fenícios. O vidro nasce da combinação da sílica, mineral contido na areia de rio, combinada com cal (carbonato de cálcio); a fusão é facilitada por uma substância alcalina, a soda; esta última extraída na antiguidade das cinzas das algas e de plantas costeiras.

A mais antiga manufatura conhecida do vidro provem da Ásia ocidental, na Mesopotâmia (atual Iraque), e remonta à Idade do Bronze, ao redor do terceiro milênio antes de Cristo. Os mais antigos trabalhos encontrados são contas coloridas, carimbos e sigilos, ornamentos de marchetaria e placas. Essas técnicas mais antigas possibilitavam apenas a fabricação de peças pequenas, quase sempre destinadas a usos ritualísticos ou decorativos. Só bem mais tarde, ao redor dos século 16 e 15 antes de Cristo, aparecem os primeiros objetos de dimensões maiores, vasos, jarras, copas. Eles eram bastante frequentes na época dos faraós, no Egito. Como, naquela época, o Egito conquistara vastas áreas da Mesopotâmia, da Síria e da Palestina, é provável que tenham aprendido os segredos da composição e da fabricação do vidro com alguns prisioneiros que os conheciam bastante bem.


Rapidamente, a tecnologia da produção do vidro se difundiu em toda a orla do Mediterrâneo entre os séculos 15 e 13 antes de Cristo. Apesar disso, o vidro permaneceu um produto raro e caro, por conta das dificuldades da sua produção. As fábricas foram instaladas nos grandes centros urbanos, e desenvolveram sua atividade sob o patrocínio do rei ou da classe aristocrática. Eram, de qualquer forma, pequenos ateliês de dimensões e de produção bastante limitadas.

Já nessa época, os vidreiros conquistaram uma auréola que, de certa forma, permanece até os dias de hoje. Eles constituíam uma classe de operários de elite, dedicados a uma arte “esotérica”: os métodos da sua atividade eram considerados fruto da habilidade e talento pessoais, mas também da magia e da posse de poderes ocultos.

As diferentes formas de produzir e trabalhar o vidro foram surgindo e se desenvolvendo ao longo dos séculos, dando origem a várias tecnologias. Uma delas, a do vidro soprado, surgiu aparentemente no antigo Egito, e atingiu seu máximo desenvolvimento em Veneza e nas cidades vizinhas de Murano e Burano, durante a Idade Média, bem como na região da Boêmia alemã e checa. Foi também nesse período que surgiu a extraordinária arte dos vitrais, que até hoje podem ser admirados nas grandes catedrais cristãs da Europa e de outros lugares do mundo. A técnica continua sendo utilizada até hoje, sobretudo para a realizações de obras de arte. Já o termo “vidro cristal”, que deriva do cristal mineral, assumiu uma conotação de vidro incolor de alta qualidade, geralmente usado para a confecção de objetos refinados como taças, vasos e contas para lustres e outros lampadários.


Por que a escolha do vidro como matéria-prima da sua arte? “Porque o vidro, com sua transparência, funciona como um filtro de luz. Ao passar através dele, a luz revela todos os matizes das cores que o compõe. E uma simples luminária de vidro, por exemplo, se transforma numa verdadeira porta dimensional para quem a contempla. Ela permite que o observador faça o caminho inverso: passar para o outro lado para encontrar, não simplesmente a luz elétrica que a ilumina, mas toda a paleta subjetiva que representa a própria origem das cores: a dimensão quase intangível da cor pura”, diz Cláudio.

“Talvez seja por isso, por possibilitar um alcance tão profundo à percepção, que o vidro seja um material tão delicado, e muitas vezes tão ciumento e possessivo. Você não imagina quantas peças simplesmente se quebram ou se desfazem durante a cocção no forno, para que apenas algumas poucas permaneçam intactas e perfeitas. Mesmo assim, quando você começa a trabalhar com ele, não consegue mais parar. O vidro se apodera do vidreiro, acena sempre com algum novo mistério a ser descoberto, e não admite que você se dedique a qualquer outro material. Ele exige exclusividade”.

E vocês estão dispostos a concedê-la? Cláudio e Alessia respondem quase ao mesmo tempo: “Acho que não somos nós a escolher o vidro. É ele quem nos escolhe.”




Mais informações sobre a arte do vidro, e para contatar Alessia e Claudiio Radiciotti: http://www.radiciotti.it/

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

PANTANAL - Nas asas das araras-azuis




Visitei o Pantanal sul-mato-grossense, no final de novembro de 2009,
para conhecer o trabalho do Projeto Arara-Azul.
Iniciativa exemplar, ele é a prova cabal do que pode fazer,
em termos de realização ambiental, a iniciativa privada e a empresarial quando se unem à dedicação e à competência de uma séria pesquisa científica.

Por Luis Pellegrini
Fotos de Luciano Candisani


Cheguei há pouco do Pantanal de Mato Grosso do Sul, onde vivi, em companhia de um grupo de colegas jornalistas, uma bela experiência: acompanhar o trabalho de preservação e pesquisa das araras-azuis, espécie até há pouco seriamente ameaçada de extinção, desempenhado pelos biólogos especialistas do Instituto Arara-azul.



A chefe do projeto é a bióloga mato-grossense Neiva Guedes. Cientista e ser humano excepcional, Neiva tem aquela energia vital à flor da pele, típica das pessoas que realmente amam o que fazem: a força da paixão. Graças a essa força, mais muito estudo, dedicação e trabalho braçal – atributos que faz questão de repartir com toda a sua equipe –, ela conseguiu um feito prodigioso em apenas duas décadas de trabalho: triplicar o número de araras-azuis na região do Pantanal.

O Projeto Arara-Azul, que atua no estudo e preservação dessas aves no Pantanal sul-mato-grossense, celebrou 20 anos de atividades em 2009. Com efeito, foi em novembro de 1989 que Neiva Guedes, recém-formada, viu um bando de araras-azuis durante uma prática de campo. Foi amor à primeira vista. “Eram cerca de 30 araras-azuis pousadas num galho seco. Quando soube que a espécie estava ameaçada de extinção, e que estava desaparecendo rapidamente, decidi fazer algo para impedir isso”, conta Neiva. Essa decisão se tornou um marco em sua vida: a luta pela conservação da arara-azul em seu hábitat natural. Teve início assim uma missão à qual Neiva até hoje se dedica de corpo e alma.


Os resultados desses esforços são evidentes: hoje, a população de araras-azuis está se expandindo no Pantanal e praticamente triplicou a área monitorada; quando os trabalhos do Projeto Arara-Azul começaram, contabilizavam-se apenas 1.500 indivíduos da espécie; calcula-se no momento que a população na região já supera 5 mil indivíduos; 386 ninhos naturais estão cadastrados em 57 fazendas (mais de 400 mil hectares); 218 ninhos artificiais foram instalados em 14 fazendas; mais de 160 ninhos foram manejados e recuperados; acadêmicos, graduados e voluntários do Brasil e do exterior estão sendo treinados; araras-vermelhas e canindés também estão sendo monitoradas. Melhor ainda, fazendeiros de outros Estados estão se inspirando no exemplo e começando a instalar programas de proteção e ninhos artificiais para araras e outros psitacídeos em suas propriedades. O Projeto Arara-Azul já faz escola.

“Claro”, diz Neiva, “eu sozinha pouco ou nada conseguiria fazer. O projeto está dando certo graças ao apoio constante dos parceiros e patrocinadores que, alguns desde o início, como é o caso da Toyota, permanecem a nosso lado”. A montadora comemora os 20 anos da parceria por intermédio da Fundação Toyota do Brasil, que assumiu o direcionamento de importantes investimentos locados em responsabilidade social e ações de caráter ambiental.
Entre as novidades, por sinal, a principal iniciativa da parceria entre essa fundação e o Projeto Arara-Azul é a construção do Centro de Sustentabilidade, na base do Instituto Arara-Azul, em Campo Grande (MS). O novo espaço será referência na disseminação da cultura de proteção ao meio ambiente, por meio da educação da comunidade. “O Projeto Arara-Azul é um dos mais importantes e respeitados projetos de estudo e conservação de aves em seu hábitat natural. Desde a sua criação, em 1989, a Toyota acreditou na seriedade e no trabalho de todos os envolvidos e está investindo para colaborar com a multiplicação dos resultados do projeto”, ressalta George Costa e Silva, diretor-executivo da Fundação Toyota do Brasil.
Como a imensa maioria dos ninhos está situada em regiões não pavimentadas e de difícil acesso, a Fundação Toyota doou ao projeto picapes Hilux com tração 4x4, que permitem às equipes de biólogos chegarem a esses locais.

Participar de uma dessas jornadas de monitoramento na companhia dos biólogos faz qualquer um se sentir um Indiana Jones pantaneiro. Essa é, por sinal, uma emoção acessível a qualquer um que deseja experimentá-la. O Instituto Arara- Azul aceita levar junto – e por valores bastante razoáveis – minigrupos de turistas interessados. Trata-se, asseguro, de uma experiência vital definitiva, sobretudo para crianças da cidade grande. Quem quiser saber mais a respeito, basta acessar o site do Instituto, que citarei ao final.
Na fazenda e refúgio ecológico Caiman (outro grande parceiro do projeto), localizada no Pantanal Sul, está instalada a base para trabalhos de campo do Arara-Azul. Lá, a aventura começa ao nascer do sol. É nas primeiríssimas horas da manhã, no momento em que a fome bate e os bichos precisam comer, que os animais do Pantanal se mostram mais ativos e podem ser observados com mais facilidade. Bem instalados nas Hilux azuis, seguimos por trilhas de terra batida em direção aos “capões”, bosques de árvores e palmeiras que pontilham em toda a planície pantaneira. É neles que vivem e nidificam as araras-azuis, bem como as vermelhas e várias outras espécies de pássaros pantaneiros.



“O nome científico da espécie é Anodorhynchus hyacinthinus, popularmente chamada arara-azul grande, araraúna ou arara- preta”, explica Neiva durante o trajeto. “Pode medir até um metro e pesar 1,3 kg. É o maior psitacídeo do mundo. Na natureza, começa a se reproduzir com 8 ou 9 anos, formando casais para a vida toda. Coloca em média dois ovos de cada vez e, em geral, só um filhote sobrevive, ficando por três meses no ninho. Após esse período, começa a voar, mas continua dependente da alimentação dos pais até os seis meses”.
A aula da bióloga prossegue, ao mesmo tempo em que, das janelas do veículo, nossos olhos não sabem onde se fixar. São tuiuiús, seriemas, colhereiros, garças, veados-campeiros e veados do Pantanal, tamanduás, cachorros-do-mato, tatus e um sem-número de outros animais que, à beira da estrada, parecem pouco se importar com a passagem dos carros. Na fazenda Caiman – dizem que por ordens expressas do dono, o industrial e ecologista paulista Roberto Klabin, atual presidente do Instituto SOS Pantanal e da Fundação SOS Mata Atlântica –, é totalmente proibida qualquer agressão ou perseguição aos bichos. Eles respondem aos bons tratos exibindo sem nenhum temor nem pudor toda a sua beleza. Até onças-pintadas podem aparecer, saindo de dentro dos capões, ao entardecer, desde que devidamente chamadas pelos “esturradores”, um tipo de cuíca que imita à perfeição os esturros desses felinos. Ao ouvir os sons, achando que uma rival está invadindo os seus domínios, a onça sai do esconderijo e se aproxima. Aí, é melhor permanecer dentro do carro...

No Pantanal, explica Neiva, a alimentação das araras-azuis é baseada exclusivamente em castanhas de duas espécies de palmeira: acuri e bocaiúva. Uma única espécie de árvore, o manduvi, concentra até 90% dos ninhos da arara-azul. Para auxiliar na reprodução, as equipes do projeto trabalham não somente na recuperação e no manejo dos ninhos naturais, como também na construção de ninhos artificiais por toda a área, estimulando a população.
E finalmente chegamos a um dos capões que abrigam ninhos naturais. Eles são construídos pelas araras no alto dos manduvis. Por ter um cerne macio e suscetível à formação de ocos, essa é a árvore que elas preferem. As araras-azuis não começam um buraco, mas aumentam pequenas cavidades feitas por pica-paus, ou provocadas pela queda de galhos, ou mesmo iniciados por fungos e cupins. O buraco utilizado para o ninho é fundo e aconchegante, forrado com serragem que as araras beliscam da própria árvore.

Mas como é difícil encontrar cavidades naturais e há uma grande disputa com outras espécies, o Projeto Arara-Azul desenvolveu e instalou ninhos artificiais. Os primeiros ninhos foram colocados em 1997, em fazendas do Pantanal. A taxa de ocupação foi pequena, mas atingiu o objetivo de contribuir para a conservação da espécie a curto prazo porque parte deles foi ocupada por araras-vermelhas, tucanos, gaviões, corujas, patos selvagens e urubus, diminuindo a disputa por ninhos naturais.
Ainda na borda do capão, a ordem é falar bem baixo; melhor ainda, permanecer em silêncio, para não assustar os animais.
Em fila indiana, seguimos Neiva e sua equipe: Carlos Cezar Correa, assistente de pesquisa; Grace Ferreira da Silva, bióloga; Neliane G. Corrêa, comunicadora; Eveline R. Guedes, turismóloga, além dos estagiários e voluntários.


Logo depois, localizado o ninho, o ritual se repete diariamente, de ninho em ninho: um dos pesquisadores escala o munduvi com a ajuda de cordas, numa modalidade de rapel; chega até o ninho, localizado entre 5 e 10 metros de altura; coloca a mão dentro do oco e extrai lá de dentro o filhote. Embora repetido mil e uma vezes, o instante é sempre mágico. Nas mão do pesquisador, a pequena arara mantém-se imóvel e tranquila, como se soubesse que nenhum mal lhe será causado. Colocado dentro de um balde acolchoado, o animalzinho desce até o solo, onde será pesado e medido. Se já estiver com quase três meses de idade, época em que começará a dar seus primeiros voos fora do ninho, será também anilhado, uma quantidade mínima de seu sangue será recolhida e enviada a um laboratório para detectar-se o seu sexo e o seu DNA, e em seu peito será implantado um minúsculo chip, espécie de carteira de identidade que o identificará para sempre.
E aí – rasga coração –, Neiva Guedes cumpre um gesto que revela toda a profundidade da sua relação com as araras azuis: traz o filhote para perto do rosto e o cheira, como quem cheira uma rosa. “Não há perfume melhor, experimente!”, ela exclama. É minha vez de confirmar o que ela afirma: os filhotes, todos, têm cheiro de bebê, de bebê humano, logo depois do banho, com sabonete e talco de coco.
E fica fácil entender por que ela decidiu dedicar a vida a proteger e preservar essas aves, e por que é hoje conhecida em todo o Pantanal e em vários lugares do mundo como “a Dama das Araras”. Neiva merece.


Para saber mais: