sábado, 2 de janeiro de 2010

É HORA DE ESVAZIAR AS GAVETAS!

O primeiro sinal de alerta aconteceu bem na véspera do Natal, em meio ao corre-corre para responder mensagens e se preparar para a ceia na casa da mamãe. Precisava de um papel com anotações e não lembrava onde o guardara. Abri as gavetas da mesa de trabalho, uma a uma, e levei um susto: todas estavam cheias até as bordas com montes de pastas fechadas, cadernos amarelados, recibos de contas, canhotos de talões de cheques, objetos quebrados, e até sacos de plástico com as pedrinhas que eu colecionava na infância. Claro, não encontrei o bendito papel.

Fui para a cozinha preparar um chá. Mas onde estaria a caixinha com sachês de erva cidreira? O interior da despensa parecia uma seção doida de supermercado: temperos, chás, sopas e capuccinos instantâneos, latarias, pacotes de spaghetti Barilla, vidros de palmito. Claro, não achei a erva cidreira.

Na segunda-feira, dia 28, abri o guarda roupa em busca do meu jeans preferido. Ao folhear entre os cabides, eis que o pau que os sustenta se desprende e vem abaixo, exausto do peso que suportava. As roupas todas rolaram para o chão, parecendo uns bichos moles subitamente liberados das suas jaulas.

Fui tomado então por um faniquito histórico, daqueles que a gente nunca mais há de esquecer. Respirei fundo, e decidi: É agora ou nunca! Chamei Dona Célia, a santa empregada que há anos tenta - sem muito êxito - controlar minha desordem, e conclamei-a à luta: "Traga um monte daqueles sacões plásticos pretos. Hoje vai ser dia de bota fora".

E assim foi. Mais da metade do que estava no guarda-roupa foi parar dentro dos sacos. Outro tanto para as comidas que envelheciam na despensa. A batalha mais renhida foi com a papelada nas gavetas, mas também ela teve de amargar sua derrota.

Final da tarde, missão cumprida. Exausto, atirei-me ao sofá da sala. Logo chegou Dona Célia trazendo os louros da minha vitória: um café fresquinho. Tomei um primeiro gole, pensei em todos aqueles espaços vazios que agora estavam à minha disposição, e um milagre aconteceu. Uma sensação de prazer me invadiu, um contentamento de criança como não sentia há muito tempo. Entendi a lição: liberar-se do inútil é tão importante quanto conservar o útil. Prometi nunca mais deixar-me escravizar pela ditadura do supérfluo e, a partir de agora, conservar apenas aquilo que é necessário. Espero manter a promessa, mas sei que não será fácil. Nossa tendência a acumular quinquilharias inúteis é um vício pertinaz, que não se deixa derrotar tão facilmente.

Na verdade, o que fiz naquela segunda-feira heróica foi dar combate a um dos diabos chifrudos dos tempos atuais: o consumismo insustentável e neurótico. Valor básico da sociedade moderna, ele é responsável por grande parte das mazelas contemporâneas.

Por sorte, não estou sozinho ao decidir ingressar na cruzada anti-consumista. Há todo um movimento mundial nesse sentido. Ele ganha força a cada dia, e deverá mudar os rumos da sociedade nas próximas décadas. Os americanos o batizaram de downshifting (baixar o facho, reduzir as expectativas), downsizing (diminuir o tamanho), simple life (vida simples) ou, ainda, voluntary simplicity (simplicidade voluntária). Muitos nomes para uma mesma tendência que aconselha a reduzir os desejos e as ambições, a cortar o supérfluo, a livrar-se do inútil, a privilegiar, quando se faz alguma compra, a qualidade e a durabilidade, e não mais a quantidade.

Trata-se, em resumo, de uma doutrina que prega a simplificação do nosso estilo de vida. Ela tenta definir um consumismo e um consumidor mais maduros, e sua primeira recomendação é trancar com cadeado a carteira quando se trata de comprar. Claro, para essa decisão de viver com mais medida e melhor seletividade, de consumir de modo menos obsessivo, também contribuem a crise econômica mundial e o incremento da incerteza em relação ao futuro. Portanto, controlar melhor o consumo não é, para muitos, apenas uma decisão pessoal, mas sim um fato ditado pela pura necessidade. O que importa é que, por uma razão ou por outra, a proposta da simple life encontra eco num número cada vez maior de pessoas.

Como o próprio nome parece indicar, as bases filosóficas da vida simples são exatamente isso: simples. Quem opta por ela prefere não sacrificar as relações com a família, com os amigos e a comunidade, em troca do avanço na carreira profissional; prefere não adiar ou desfigurar esperanças e ideais de uma verdadeira realização pessoal para concentrar-se exclusivamente em juntar seu "pé de meia"; prefere não se deixar contaminar pela luxúria do consumismo descontrolado.

Livros sobre a vida simples fazem furor. Nos Estados Unidos, David Shi, presidente da Furman University e autor de best-sellers do assunto, diz que "um número cada vez maior de pessoas está enervado pelas exigências e pelo ritmo frenético da vida moderna, e frustrado pela sua incapacidade de encontrar alternativas viáveis que possibilitem uma saída dessa vida. Casas cuja manutenção é caríssima, mães obrigadas a trabalhar fora, jornadas de trabalho de 12 horas, são coisas que estão levando as pessoas a superar seus limites máximos de resistência e a entrar em pane".

Joe Dominguez, outro guru da vida simples, autor de Your Money or Your Life ("Seu Dinheiro ou Sua Vida") - que já vendeu meio milhão de exemplares só nos Estados Unidos - vai na mesma linha. Ex-corretor no centro financeiro de Wall Street, em Nova York, Dominguez explica como fazer o cálculo elementar que, há duas décadas, o convenceu a revolucionar a própria vida. Basta somar as compensações econômicas de uma existência dedicada ao trabalho na sociedade do consumo e confrontá-las com a sua riqueza atual: "Você ganhou mais de 1 milhão e, hoje, o valor líquido que possui em caixa está abaixo de zero, e você está cheio de dívidas? Então, a única pergunta que você deve fazer é a seguinte: Valeu a pena?"

Como fazer para "baixar o facho" e entrar na vida simples? Existem infinitas maneiras de fazê-lo. Eu comecei pelo bota fora em minha casa. Elaine Saint James, autora de um outro best-seller, Simplify Your Life ("Simplifique Sua Vida"), foi bem mais radical. Ela vendeu sua grande casa em Santa Bárbara, Califórnia, para viver num pequeno apartamento; cortou pela raiz, de repente, sua carreira de agente imobiliária, para tornar-se escritora; resgatou, segundo afirma, 30 horas semanais que antes consumia na agitação da vida moderna.

Saint James também aconselha seus leitores a "abrir o armário e jogar fora tudo aquilo que não foi usado durante o último ano; mudar para uma casa menor; não comprar a casa, e sim alugá-la; fazer faxina geral apenas uma vez a cada 15 dias; para não sujar o ambiente, deixar os sapatos à porta e andar descalço dentro de casa; vender barcos e outros pertences de pouco uso e cara manutenção; em vez de ir ao cinema, contemplar o pôr-do-sol; conservar apenas um cartão de crédito e devolver todos os outros; quando sair às compras, deixar em casa inclusive aquele único cartão. E mais: vender o celular; fazer aquilo que gosta: transformar os passatempos preferidos em trabalho rentável; jejuar uma vez por semana; nos outros dias, de preferência comer os alimentos considerados mais baixos na cadeia alimentar, como cereais, verduras e legumes; despedir o massagista e o treinador pessoal de ginástica, e caminhar quilômetros pelas ruas e parques; parar de tentar mudar os outros; jogar fora todos os remédios, menos a aspirina; reduzir todas as expectativas.

Os dez mandamentos da vida simples

Assim sendo, realmente decidido a simplificar minha vida - tanto a externa quanto a interna - decidi criar, baseado nos conselhos dados pelos vários autores que consultei e também em reflexões próprias, um decálogo da vida simples. É o meu presente de começo de ano 2010 para os amigos leitores que acompanham este blog.

1. Refletir sobre o fato de que, muitas vezes, gastamos dinheiro que não temos para comprar coisas que não nos interessam só para impressionar pessoas de quem não gostamos. Em resumo, antes de comprar, perguntar se o fazemos para o nosso prazer ou para o prazer dos outros.

2. Nunca esquecer do antigo ditado "o barato sai caro". Os artigos de boa qualidade custam mais, mas em compensação rendem muito mais do que a abundância medíocre. Aprenda a gastar melhor o seu dinheiro. Para começar, esteja mais atento à relação preço/qualidade, tornando-se mais crítico e exigente. Sobretudo, aprenda a distinguir necessidade de capricho, essencial de supérfluo.

3. Simplifique sua vida, mas não seja ortodoxo obsessivo: pode-se "baixar o facho" para adquirir certo tipo de produto, e não baixá-lo para outros tipos. Por exemplo: pode-se comprar camisetas em qualquer supermercado barato; mas a garrafa de bom vinho francês deve ser adquirida apenas em casas de confiança.

4. Ao comprar "bens duráveis", certifique-se de que eles realmente trazem a garantia de longa duração.

5. Valorize o seu tempo. Lembre-se de que ele é dinheiro em dois sentidos: a) porque pode ser empregado para ganhar dinheiro; b) porque tempo vale tanto quanto dinheiro.

6. Reflita sobre o seu trabalho e a sua carreira: eles realmente lhe satisfazem ou você mergulha neles com fúria e descomedimento só para preencher outros vazios existenciais?

7. Aprenda a cultivar prazeres de baixo custo e virtualmente inexauríveis, como a arte, a música, a leitura, o contato com a natureza, o convívio com as pessoas queridas, etc.

8. Convença-se de que, se as políticas do governo poderão tirar de nossos filhos a herança patrimonial material que queremos lhes deixar, não poderá roubar deles a cultura, o saber, o afeto e o equilíbrio psicológico que pudermos lhes transmitir.

9. Mesmo que você não nutra grandes simpatias pelos ecologistas, é preciso reconhecer o fato de que um consumismo mais seletivo significa um uso mais moderado e racional dos recursos do planeta.

10. Não se deixe tomar pela neurose do pauperismo: a vida simples foi concebida para se viver melhor, e não para a autoflagelação. Viver é celebrar a vida. E isso, em certas ocasiões especiais, pode requerer champanhe e caviar.

6 comentários:

  1. Salve, Pellegrini! Adorei o post, e aproveito para indicar um site que acompanho e que segue super essa linha da simplicidade, inclusive no nome. Dê uma olhada:http://www.onsimplicity.net/
    Saludos, paulocésar

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  2. Olá caro Paulocésar!
    Obrigado pelo comentário. Vou sim dar um passeio pelo www.onsimplicity.net/
    Quem sabe esse portal reforçará minha decisão de partir cada vez mais para a vida simples neste ano de 2010...
    Abs do
    Luis Pellegrini

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  3. Olá querido!
    Adorei ver o Blog Luis Pelegrini. Vamos acompanhar! Delicia. Obrigada!
    beijos, Flavia C

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  4. adorei o post. Esvaziar gavetas é uma das minhas necessidades, não tanto por consumismo, mas porque adoro ser o arquivo do mundo. Há algum tempo li um artigo sobre Patrice Moore, um novaiorquino que ficou dois dias soterrado em sua casa, embaixo de livros, revistas, papéis,cartas, antes de ser socorrido por vizinhos e pelo Corpo de Bombeiros.Um perigo essa mania de juntar muita coisa...

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  5. Quanta coisa gostosa de ler no seu blog! Claro, só podia ser assim. Vou acompanhar de perto. Beijocas, Celinha

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  6. ola Luis P.
    acompanho seu trabalho de longa data, e sou admirador de suas colunas e crônicas...e foi muito oportuna a matéria sobre o reprodução humana na Planeta de fevereiro...seus comentários no editorial vem de encontro com meu pensamento, este é o momento de refletirmos se o planeta irá suportar e até quando tamanha destruição!!!é hora de avaliar e mudar nossos comportamentos, inclusive os reprodutivos!!
    em relação a esvaziar as gavetas, sempre funicionou muito bem comigo, da uma leveza sem igual, ao corpo e a alma!!!

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